ASPECTOS EPIDEMIOLÓGICOS E DE
ORGANIZAÇÃO DA REDE DE ATENÇÃO ONCOLÓGICA
Os principais dados epidemiológicos que possibilitam a descrição da situação do câncer
em determinada população são a INCIDÊNCIA, ou seja, o total de casos novos da doença
no período avaliado; a SOBREVIDA, que representa o tempo de vida após o diagnóstico da
doença e inclusão do indivíduo com câncer em um sistema de informações que permita o seu
acompanhamento; e a MORTALIDADE, que relaciona os óbitos que tiveram como causa as
neoplasias malignas.
Para a estimativa de incidência por câncer na infância e juventude, é necessária a
implantação de sistemas de informação com Registros de Câncer de Base Populacional (RCBP).
No Brasil, existem, atualmente, 28 RCBP, sendo que desses, 20 apresentavam informações
consolidadas para um ano, o que permitiu a publicação recente, pelo Instituto Nacional de Câncer,
de informações sobre taxas de incidência por câncer na população de 0 a 19 anos de alguns
municípios brasileiros. Essas taxas variaram, considerando-se períodos de acompanhamento
diferentes, de 76,85 por 1.000.000 (taxas ajustadas por idade) nos RCBP da cidade de Belém (PA),
até 220,32 por 1.000.000 em São Paulo (SP) e 230,98 em Goiânia (GO), sugerindo que existam
problemas de acesso ao diagnóstico em regiões com menor oferta de serviços especializados.
Para se ter uma ideia do que essas taxas significam, é importante compará-las com as de outros
países, no mesmo grupo etário: nos Estados Unidos da América (EUA), na década de 1990, a taxa
média era de 149 por 1.000.000, chegando a 165,92 em estudo americano mais recente e a 157
casos novos por 1.000.000 de habitantes de 0 a 19 anos, em estudo europeu, de 2004, sendo
maior a incidência no sexo masculino (INCA, 2008).
O percentual mediano dos tumores pediátricos encontrados nos RCBP brasileiros situase
próximo de 3%, o que permite o cálculo estimado de 9.890 casos por ano de tumores
pediátricos no país, se retirados os tumores de pele não melanoma do total estimado para a
população em geral (INCA, 2007). Esse número de casos novos estimados, quando calculado
para diferentes estados e regiões do país, deve servir como parâmetro para o planejamento de
ações e organização dos centros ou unidades com oncopediatria, na medida em que os melhores
resultados são esperados quando respeitadas escalas que possam garantir um número razoável
de casos acompanhados por ano e por serviço. Desse modo, evita-se a excessiva fragmentação
da oferta, frequentemente associada a resultados insatisfatórios e pior desempenho dos serviços
de acompanhamento.
As formas mais frequentes de câncer na infância e na adolescência são as leucemias,
principalmente a leucemia linfoide aguda, sendo também muito recorrentes os tumores de Sistema
Nervoso Central (SNC). Na cidade de São Paulo, existe um registro de base hospitalar de câncer
da Fundação Oncocentro de São Paulo (FOSP), em que podem ser verificadas informações sobre
tipos mais frequentes de câncer na população brasileira de 0 a 18 anos, no período de 2000 até junho de 2008: 25,7% dos casos foram de leucemias, 16,3 % de linfomas e 12,8% de tumores
do SNC (FOSP, 2008). O fato de, no Brasil, os tumores de SNC ocuparem o terceiro lugar
na incidência, depois das leucemias e dos linfomas, além de demonstrar a necessidade de mais
estudos que possam explicar esse quadro, pode sugerir que existam problemas de subdiagnóstico
no caso dos tumores de SNC, já que, nos países desenvolvidos, esse grupo de neoplasias é o
segundo mais frequente.
A sobrevida no câncer pediátrico está relacionada a diversos fatores, entre eles, os
relacionados ao paciente, como sexo, idade, assim como a localização, extensão e tipo de tumor.
Porém, as questões inerentes à organização do sistema de saúde — que podem implicar maior
ou menor facilidade e oportunidade de diagnóstico, referência para tratamento, qualidade do
tratamento e suporte social — também contribuem para determinar chances diferenciadas de
sobrevida (BLACK, 1998).
A sobrevida de crianças com câncer melhorou muito nos últimos 30 anos. Antes
disso, essa era uma doença quase sempre associada à morte, enquanto hoje, na maioria dos
centros desenvolvidos, sua cura ultrapassa a faixa de 70% dos casos (INCA, 2008). Nos EUA,
a sobrevida em cinco anos do câncer em crianças e adolescentes aumentou de 28% em 1960
para 75% em 1990, um crescimento de 42% (SIMONE, 1998). Na Europa, a sobrevida em
cinco anos de crianças também melhorou, passando de 44% naquelas diagnosticadas em 1970
para 64% em crianças diagnosticadas em 1980 e 74% para crianças diagnosticadas em 1990
(STELIAROVA-FOUCHER, 2004). Vários fatores colaboraram para a melhora dos resultados,
como cuidado especializado das crianças em unidades de oncologia pediátrica dedicadas, com
equipes especializadas e participação em estudos clínicos prospectivos, bem delineados (CRAFT,
2000; SIMONE, 2006).
No Brasil, embora os resultados de muitos serviços especializados sejam comparáveis
aos de países mais ricos, persistem diferenças regionais na oferta de serviços, fazendo com que
as médias de sobrevida no país ainda estejam abaixo daquela esperada para o desenvolvimento e
conhecimento técnico do momento.
A mortalidade por câncer no grupo de 0 a 19 anos apresenta-se hoje como uma das
principais causas de óbitos, proporcionalmente, na medida em que houve redução das causas
relacionadas à prevenção por imunização e outras ações básicas de saúde, assim como a melhores
condições de vida. Até o momento, não são conhecidos fatores de risco que determinem
isoladamente maior probabilidade de aparecimento do câncer na criança e no adolescente nem
maior risco para a letalidade por essa causa. As propostas de enfoque diferenciado das políticas
públicas para a questão do câncer na infância e adolescência justificam-se pela expressão da
mortalidade proporcional hoje demonstrada nesse grupo. O câncer já aparece entre as cinco principais causas de óbitos no Brasil desde os primeiros anos de vida (INCA, 2008), porém, é
na faixa etária dos 5 aos 18 anos — que frequentemente recebe menor prioridade das ações de
vigilância em saúde, incluindo-se a atenção básica — que o câncer representa a primeira causa
de óbitos por doença, se não forem considerados os óbitos por causas externas (acidentes e
violência). Esses dados são suficientes, portanto, para destacar a importância atual do câncer na
formulação de políticas e ações de saúde da criança e do adolescente.
Desse modo, as estratégias de ampliação da sensibilidade do sistema de saúde e serviços
em geral, visando à suspeita diagnóstica nos casos sugestivos, mesmo sendo a maior parte de seus
sinais e sintomas inespecíficos, poderão resultar na detecção precoce de casos, impulsionando
a necessidade da organização da rede de serviços, nos seus diferentes níveis de assistência, de
modo a garantir o acesso também precoce ao tratamento adequado e de qualidade.
LEGISLAÇÃO E POLÍTICAS PÚBLICAS
Desde a década de 1930, com a criação do Centro de Cancerologia no Serviço de
Assistência Hospitalar do Distrito Federal, iniciou-se o processo de organização de ações voltadas
para o tratamento do câncer. Em 1941 foi elaborada uma Política Nacional de Controle do
Câncer, que foi modificada e desenvolvida por diferentes contextos políticos e institucionais. Com
a promulgação da Lei Orgânica da Saúde, que criou o Sistema Único de Saúde (SUS), em 1990,
observou-se o fortalecimento do Instituto Nacional de Câncer, do Ministério da Saúde, em sua
função de órgão formulador da política nacional de prevenção e controle do câncer.
Com a publicação da Portaria GM/MS nº 3.535, de 2 de setembro de 1998, o Brasil atingiu
uma expressiva rede de unidades credenciadas e habilitadas para a assistência oncológica que, apesar
de já apresentar um razoável nível de organização, ainda não se mostrava capaz de determinar
impacto suficiente para alterar positivamente as curvas de sobrevida e mortalidade por câncer.
A partir de 2003, o INCA iniciou um processo de inovação conceitual com a definição do
câncer como um problema de saúde pública, exigindo, assim, a necessidade da contribuição dos
serviços de saúde de todos os níveis de complexidade, a participação das instituições da sociedade
civil e a busca pela ampliação da visibilidade, da compreensão e da inclusão do controle do câncer
na pauta cotidiana dos meios de comunicação e das autoridades das mais diversas áreas.
Em 2005, o Ministério da Saúde lançou a Política Nacional de Atenção Oncológica, que
apresenta como premissa a necessária integração da atenção básica às média e alta complexidades,
buscando facilidades para o acesso a todas as instâncias de atenção e controle do câncer, além
da oferta e utilização racional dos serviços hospitalares e tecnologias médicas (Portaria GM/MS nº
2.439, de 8 de dezembro de 2005).
Segundo a referida portaria, a Política Nacional de Atenção Oncológica deve ser
organizada de forma articulada com o Ministério da Saúde e com as secretarias de saúde dos
estados e municípios, permitindo, entre outros aspectos, a organização de uma linha de cuidados
que perpasse todos os níveis de atenção (básica, especializada de média e alta complexidades) e de
atendimento (promoção, prevenção, diagnóstico, tratamento, reabilitação e cuidados paliativos).
No caso específico da atenção básica, recomenda a realização de ações de caráter individual e
coletivo, voltadas para a promoção da saúde, prevenção do câncer, bem como para o diagnóstico
precoce e apoio à terapêutica de tumores, aos cuidados paliativos e às ações clínicas para o
seguimento de doentes tratados. A média complexidade tem a responsabilidade pela assistência
diagnóstica e terapêutica especializada, inclusive cuidados paliativos,, garantida a partir do processo
de referência e contrarreferência dos pacientes, ações essas que devem ser organizadas segundo
planejamento de cada unidade federada e os princípios e diretrizes da universalidade, equidade,
regionalização, hierarquização e integralidade da atenção à saúde. Por sua vez, à alta complexidade
deve ser garantido o acesso de doentes com diagnóstico clínico ou com diagnóstico definitivo de
câncer. É nesse nível de atenção que se deve determinar a extensão da neoplasia (estadiamento),
tratar, cuidar e assegurar qualidade de acordo com rotinas e condutas estabelecidas, o que se
dará por meio de Unidades de Assistência de Alta Complexidade em Oncologia (UNACON) e
Centros de Assistência de Alta Complexidade em Oncologia (CACON).
Os prazos e critérios para o credenciamento e habilitação em Oncologia foram
atualizados pela Portaria SAS/MS nº 741, de 19 de dezembro de 2005, complementada pela
Portaria SAS/MS nº 361, de 25 de junho de 2007, que redefiniu as habilitações em Oncologia na
Tabela de Habilitações de Serviços Especializados, do Cadastro Nacional de Estabelecimentos de
Saúde, e pela Portaria SAS/MS nº 62, de 11 de março de 2009.
Na Portaria SAS/MS nº 741, de 2005, que contou com a participação do INCA na
sua elaboração, estão conceituadas as UNACOM, os CACON e os Centros de Referência de
Alta Complexidade em Oncologia, determinando seus papéis na rede de saúde e as qualidades
técnicas necessárias ao bom desempenho no contexto da rede assistencial. O credenciamento
dos serviços nos diferentes níveis de atenção depende de suas condições e perfil de desempenho,
porém é determinado a partir de parâmetros que consideram uma base territorial de atuação, a
partir das estimativas de casos novos de câncer por ano, em determinada região, relacionando
esses números às necessidades de oferta de atenção oncológica.
As Unidades de Assistência de Alta Complexidade em Oncologia podem prestar serviços
em diferentes especialidades, incluindo-se o Serviço de Oncologia Pediátrica. Do mesmo modo,
por decisão do respectivo gestor do SUS, com base na análise de necessidades, um hospital
exclusivo de Pediatria pode ser credenciado como Unidade de Assistência de Alta Complexidade em Oncologia Pediátrica, exclusivamente para o diagnóstico e tratamento de neoplasias malignas
de crianças e adolescentes.
No processo de crescimento da Oncologia Pediátrica no país, grande relevância deve
ser atribuída ao trabalho e interesse dos médicos oncologistas e hematologistas especializados
em pediatria, de diferentes centros de tratamento, assim como ao papel das organizações
não governamentais e das instituições que proporcionam apoio e suporte social às famílias e
pacientes com câncer. Com o impacto de novas abordagens terapêuticas nas últimas décadas —
acarretando aumento das expectativas de sobrevida nos casos de câncer na infância e juventude,
nos centros mais desenvolvidos —, além do interesse crescente e permanente de diferentes
setores da sociedade em promover melhores condições de tratamento e maiores chances de
sobrevida para crianças com câncer, o Ministério da Saúde, através do INCA, tem recebido
demandas de implementação de ações específicas voltadas ao controle desse agravo como
resposta das instituições governamentais ao quadro atual de morbimortalidade por câncer nesse
grupo populacional.
Nos últimos anos, algumas propostas e programas, coordenados principalmente por
organizações não governamentais, serviços especializados e poucos representantes de órgãos
governamentais, buscaram desenvolver ações visando à capacitação de equipes de saúde em
geral com o objetivo de ampliar-se a sensibilidade do sistema de saúde para o diagnóstico precoce
do câncer na criança e no adolescente, identificando-se o diagnóstico tardio como um dos
fatores que contribuem para resultados insatisfatórios no tratamento do câncer nesse grupo. O
desenvolvimento de tais propostas acabou por dar maior visibilidade aos problemas de oferta de
serviços e à necessidade de articulação da rede de assistência em oncologia pediátrica, a partir da
constatação de que as ações para um diagnóstico precoce não serão suficientes se não se garantir
também o acesso oportuno e adequado aos centros de tratamento.
Como resposta às demandas para que cumprisse o seu papel na formulação
de políticas públicas na área de atenção ao câncer, o INCA formou, em julho de 2008, um
Fórum Permanente de Atenção Integral à Criança e Adolescente com Câncer, visando à
integração entre diferentes instâncias governamentais, entidades científicas e médicas — como
a Sociedade Brasileira de Oncologia Pediátrica (SOBOPE) e a Sociedade Brasileira de Pediatria
(SBP) —, além de organizações não governamentais de apoio social, para alcance de melhores
resultados no diagnóstico e tratamento da doença. Por ocasião da implantação do Fórum, foram
definidas linhas de trabalho, tais como a de orientação diagnóstica, divulgação e comunicação,
qualidade da assistência especializada e avaliação dos serviços de oncopediatria, que devem ser
implementadas e aperfeiçoadas, caracterizando-se como uma área técnica diferenciada na gestão
da Rede de Atenção Oncológica. A ampla representação da composição desse Fórum permite a implementação de projetos-piloto em que a qualificação dos profissionais da atenção básica seja a
principal estratégia para melhorar os índices de diagnóstico precoce. Porém, somente a adequada
qualificação dos profissionais da atenção básica não é suficiente para impactar a sobrevida das
crianças e adolescentes com câncer. Tal estratégia deve ser acompanhada pela responsabilização
das autoridades sanitárias na organização de fluxos de atendimento e no estabelecimento de
referências para a estruturação de redes de atenção (INCA, 2008).
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