O campo de estudo das anomalias da diferenciação sexual sempre tem procurado subsídios nas exceções: desde uma proposta inicial em que a presença de um cromossomo Y era necessária e suficiente para o desenvolvimento de um indivíduo para o sexo masculino e sua ausência justificava o desenvolvimento para o sexo feminino, casos que não se enquadravam no modelo, tais como homem XX, mulher XY, hermafroditas verdadeiros XX obrigaram a procura de mecanismos mais finos para justificar tais ocorrências. Dessa forma surgiu a fase do antígeno HY que, se presente em um indivíduo que não tivesse cromossomo Y justificava o desenvolvimento para sexo masculino. Logo, no entanto, verificou-se que estávamos com o “candidato errado” e, a partir dos primeiros trabalhos com técnicas de biologia molecular, surge o ZFY (1,2) e, logo após, o SRY (sex-determining region of the Y chromosome) (3), hoje o sinalizador reconhecido como TDF (testis determining factor), localizado no braço curto do cromossomo Y. Muitos outros genes têm sido acrescentados a esse circuito e a lista cresce a cada dia (4).
Quando se analisa, na escala zoológica, a diferenciação sexual, vários aspectos são chamativos e trazem grandes questionamentos quando se procura compreender que mecanismo está por trás de uma determinada modificação. Apenas a título de exemplificação, interessante notar que em alguns peixes (sheepshead, um peixe da Califórnia), a diferenciação sexual segue um estímulo visual! Esses peixes vivem em cardumes de cerca de 20 fêmeas, comandadas por um macho, distinto das fêmeas fenotipicamente (cor, aspecto físico, tipos de nadadeiras,órgãos sexuais, gônadas). Quando este macho é retirado do cardume, uma fêmea, para manter o equilíbrio da espécie, em alguns dias sofre todas as transformações para sexo masculino e passa a comandar o cardume. Estes achados nos dizem claramente que há situações,na escala zoológica, em que não é o patrimônio genético ou o ambiente hormonal que comandam a diferenciação sexual, mas a necessidade de manutenção da espécie, percebida pela ausência do líder macho no grupo (5).
Do ponto de vista prático, a opção quanto ao sexo de criação tem se baseado no tamanho do falo e no posicionamento do meato uretral e não tem sido infreqüente a opção feminina em pseudohermafroditas masculinos, com cariótipo 46,XY e testículos. A evolução desses pacientes, que muitas vezes assumem o sexo masculino em época puberal tem feito com que se reconsiderem os critérios de indicação do sexo de criação (6).
Se, por um lado, evolui o conhecimento de mecanismos que levam uma gônada indiferenciada a testículo ou a ovário, bem como mecanismos envolvidos na construção de um fenótipo não ambíguo, por outro, ficamos sem saber o que acontece no aspecto cognitivo, cerebral e a questão que fica é: há diferença entre o cérebro masculino do feminino? ou seja, o cérebro é um órgão sexualmente dimórfico? Não se tem avançado muito neste aspecto e isto é compreensível, dadas as dificuldades de exploração de uma estrutura da complexidade do cérebro mas uma série de evidências tem se acumulado e torna, hoje, imperioso o enfrentamento deste desafio que, a bem da verdade, tem sido feito há algumas décadas, como iniciativas isoladas. Há indicações de que tanto estruturas neurais e não neurais XX e XY diferenciam-se antes mesmo de serem influenciadas por hormônios (7).
Se a resposta à questão da diferença entre um cérebro masculino e feminino for afirmativa, como realmente parece ser, uma série de outras perguntas se seguem:
Por que e como diferem os sistemas nervosos de machos e fêmeas?
Em que fase ocorre tal diferenciação?Ela pode ser reversível?
Quem comanda a diferenciação cerebral? Hormônios? Fatores genéticos? Fatores ambientais?
Quais as implicações práticas do conhecimento do dimorfismo sexual cerebral?
Neste artigo, reunimos trabalhos que têm abordado o assunto e percebemos que este caminho, que começa a ser percorrido, pode nos trazer informações de grande valia, não somente no sentido acadêmico, mas tsmbém no campo da aplicabilidade clínica.
Por que e como diferem os sistemas nervosos de machos e fêmeas?
Há uma enorme complexidade quando estudamos os sistemas envolvidos no comportamento sexual dos animais, desde comportamentos expressivos para atração do parceiro, até a amamentação de filhotes encontramos uma enorme variedade de sistemas envolvidos, sistemas que tentamos entender através da caracterização de vias neurais específicas. Uma vez que o comportamento depende da estrutura e da função do sistema nervoso, podemos imaginar e elaborar teorias de que o sistema nervoso de machos e fêmeas não é igual, tanto na forma anatômica como também nas atividades fisiológicas. Isto fica ainda mais claro quando imaginamos que estruturas corporais exclusivas de machos ou fêmeas possuem mecanismos de regulação cerebral distintos, próprios de cada um dos sexos. Dizemos que os sistemas nervosos de machos e fêmeas são dimórficos (8).
Nos cérebros humanos os dimorfismos são pequenos, sutis, difíceis de serem encontrados; núcleos hipotalâmicos variam em seus volumes médios quando comparamos homens e mulheres mas as variações são tais que não conseguimos ainda determinar um perfil a ser seguido. Já nos roedores, pesquisadores conseguem dizer se o cérebro pertence a um macho ou uma fêmea baseando-se apenas no volume hipotalâmico, com pequena probabilidade de erro. Em algumas espécies de aves canoras, apenas os machos cantam, e, não nos surpreendemos quando observamos em seus cérebros uma área para o canto muito mais desenvolvida do que em fêmeas da mesma espécie (Figura 1). Para dificultar ainda mais nosso estudo, as variações nos comportamentos sexuais dos animais são cíclicas, variando ao longo do tempo. Vários neurônios na área pré-óptica medial de macacos rhesus machos aumentam muito sua atividade durante fases específicas do comportamento sexual, incluindo a excitação e a cópula.
Figura 1 – Dimorfismo sexual cerebral entre machos e fêmeas. Os machos apresentam um desenvolvimento de estruturas que lhe permitem atividades canoras, com o objetivo de atrair a fêmea.

Uma das melhores evidências de que o cérebro é um órgão sexualmente dimórfico vem de trabalhos experimentais de Gorski, realizados em 1963, que mostravam alterações do comportamento sexual em ratas expostas a testosterona intra útero (9). Suas primeiras observações mostravam que a castração de ratos em período neonatal produzia um macho que exibia comportamento feminino (postura lordótica). Por outro lado, a administração de testosterona (T) a fêmeas aumentava a incidência de comportamento masculino. A partir desses achados, Gorski passou a observar alterações no sistema nervoso central que poderiam estar correlacionadas a esses comportamentos, chegando ao achado de um grupo de neurônios localizados no hipotálamo, numa área acima do quiasma óptico. Este núcleo foi chamado de “núcleo sexualmente dimórfico , situado na área pré-óptica (SDN-POA)”, também conhecido como “núcleo intersticial do hipotálamo anterior”. O volume desse núcleo é quatro a cinco vezes maior em machos comparado a fêmeas. Estímulo funcional dessa área, com eletrodos implantados, aumentava a agressividade sexual masculina, ao passo que lesões ablativas não produziam alterações de comportamento em ratos sexualmente maduros, nem evitava a maturação sexual em ratos neonatais. Alguns estudos mostram que a ablação ou mesmo lesão na área pré-óptica interrompe o ciclo estral em fêmeas e, em machos, reduz a freqüência de cópulas.
Há quatro grupos de neurônios chamados de núcleos intersticiais do hipotálamo anterior (INAH): o grupo chamado de INAH-1 parece ser o análogo humano do SDN-POA de ratos. Já os grupos INAH-2 e INAH-3 são evidentemente maiores (cerca de duas a três vezes) em homens do que em mulheres.
Na estria terminalis, em sua porção que se cora em negro, encontramos o núcleo BNST (bed nucleus of the stria terminalis). Nas mulheres, o componente central do BNST e da área médio sagital da comissura anterior estão aumentados, o esplênio do corpo caloso é mais bulboso, o istmo do corpo caloso é maior e a massa intermédia está freqüentemente ausente quando comparados aos homens. As mulheres mostram um corpo caloso diminuído em relação aos homens mas a comissura anterior é 12% maior em mulheres e homens homossexuais do que em homens heterossexuais. No entanto, quando a massa intermédia está presente nas mulheres, ela mostra-se maior do que nos homens. Quando se estudam transsexuais avaliando-se a quantidade de neurônios do BNST que expressam receptores de somatostatina: a despeito da orientação sexual, os homens apresentam o dobro de neurônios expressando somatostatina comparado às mulheres. Nos transsexuais masculinos que optam pelo sexo feminino, o número é semelhante ao das mulheres, ao passo que nos transsexuais femininos que optam pelo sexo masculino, o número é igual ao de homens. Estes achados apontam que, no caso dos transsexuais, a diferenciação sexual cerebral pode ir em sentido oposto à diferenciação genital (10).
Até o momento, não temos uma noção clara do significado funcional de tais dimorfismos mas sabemos que algumas dessas estruturas neurais, como o BNST, encontram-se na área de regulação do comportamento reprodutivo. Estudos realizados em pacientes que sofreram acidente vascular cerebral com lesão num único hemisfério mostraram que as funções do encéfalo feminino podem ser menos lateralizadas (menos dependentes da conexão interhemisférica) (9).
A conclusão que podemos tirar é de que as estruturas dimórficas nos cérebros humanos são previsivelmente poucas já que há grande semelhança no comportamento sexual das mulheres e dos homens.
Em que fase ocorre a diferenciação cerebral para masculina ou feminina?
No atual estágio de entendimento, acreditamos que o “programa” inicial de desenvolvimento tanto do cérebro quanto do corpo é feminino. Ambos os sexos apresentam os primórdios (anlagen) para órgãos sexuais internos masculinos ou femininos e, ao menos em parte, a influência hormonal dirige a diferenciação: testosterona e seu metabólito reduzido dihidrotestosterona promovem a diferenciação de ductos internos e da genitália externa, respectivamente, para o sexo masculino, enquanto que, em ausência desses hormônios, expressa-se o “programa” inicial para sexo feminino.
Em animais de laboratório, a manipulação do ambiente hormonal durante o desenvolvimento perinatal altera permanentemente tanto a estrutura quanto a função do SNC: expor fêmeas a hormônio masculino viriliza componentes do SNC, enquanto a castração química ou cirúrgica do macho permite o desenvolvimento de um SNC do tipo feminino. Há evidências de que a aromatização local da testosterona a estrógeno é a responsável pela masculinização das estruturas cerebrais, ou seja, a testosterona atravessa a barreira hêmato liquórica e, nas células cerebrais do núcleo sexualmente dimórfico, é convertida a estradiol, inibindo a apoptose dessas células. Já nas fêmeas, como o estrógeno circula perifericamente ligado a alfa-feto-proteína, sua passagem ao SNC fica dificultada, não podendo exercer sua ação de inibição de apoptose em núcleos pré-ópticos (11).
Parece haver um “período crítico” para a diferenciação sexual e este período é próprio para cada espécie. Dados experimentais em ratos apontam que o período crítico segue-se à diferenciação das células de Leydig e o início da produção de testosterona (T) (12). No ser humano, a partir de 7-8 semanas de vida intra-uterina inicia-se a produção de testosterona e, de 14 a 18 semanas, as células de Leydig ocupam metade do volume do testículo fetal, involuindo progressivamente até o termo. O pico de produção de testosterona ocorre entre 14 e 16 semanas de vida intra-uterina, atingindo valores encontrados em homens adultos. Após o nascimento, a produção de T é elevada nos 2 primeiros dias de vida, cai em seguida, voltando a subir com 2 semanas, mantendo-se elevada até 4-6 meses, sendo aos 2m, o pico máximo de produção (Figura 2) (5). Em analogia ao que ocorre em outras espécies, podemos supor que esses picos de produção de T tenham significado especial no desenvolvimento sexual na direção do sexo masculino.
Figura 2 – Evolução temporal da produção de testosterona desde a concepção até o pico puberal.

A primeira suspeita do que levaria o cérebro ao sexo masculino ou feminino estaria nos hormônios esteróides, diferencialmente produzidos em ambos os sexos: testosterona no sexo masculino, estradiol no feminino. Tem havido crescente evidência de que as flutuações nos níveis hormonais nos adultos estejam relacionadas a diferenças anatômicas das estruturas cerebrais em ambos os sexos. Como esses hormônios são esteróides, atuam no interior das células, tendo livre passagem através da membrana celular graças à sua solubilidade em lípides. O complexo hormônio-receptor citosólico dirige-se ao núcleo onde atua sobre o DNA induzindo ou reprimindo a transcrição de fatores que resultam num efeito final, específico para cada tecido. A idéia inicial é a de que, a ausência de testosterona durante períodos críticos de desenvolvimento do Sistema Nervoso Central levaria à formação de circuitos neurais diferentes no cérebro feminino, comparado ao masculino. Mayer-Bahlburg et al estudaram o efeito de um estrógeno sintético (Dietilstilbestrol-DES) que foi utilizado em gestações de risco até 1971, quando sua associação com adenocarcinoma de células claras da vagina e da cérvix uterina apressaram sua retirada do mercado. As comparações entre as meninas expostas ao DES pré-natal com suas irmãs indicavam que a exposição ao DES pode aumentar o desenvolvimento de um comportamento bissexual ou homossexual nessas mulheres. Três mecanismos são aventados: 1. ação do DES através da estimulação da produção de andrógenos; 2. efeitos tóxicos do DES sobre o cérebro em diferenciação; 3. uma ação do DES semelhante à do estradiol na diferenciação sexual do sistema nervoso central (13).
Talvez o modelo mais “simples” para a compreensão de como os hormônios esteróides orquestram a diferenciação de circuitos neurais esteja no núcleo espinhal bulbocavernoso em mamíferos (SNB), adjacente à base do pênis. Trata-se de uma pequena população de neurônios motores localizados na medula lombar que inerva a musculatura peniana em machos e é reduzido em tamanho nas fêmeas. Esses músculos têm um papel na ereção peniana e auxiliam na micção. Homens e mulheres possuem um músculo bulbocavernoso. Nas mulheres ele circunda a abertura da vagina e serve para constringi-la levemente. O grupo de neurônios motores que controlam os músculos bulbocavernosos em humanos é chamado de núcleo de Onuf e está localizado na região sacral da medula espinhal. O núcleo de Onuf é moderadamente dimórfico (há mais neurônios motores em homens do que em mulheres) já que o músculo bulbocavernoso nos homens é maior em relação ao das mulheres. Nos ratos, as diferenças no número de neurônios do SNB ocorrem em período pós-natal.A partir de um número de neurônios igual em machos e fêmeas, ocorre degeneração dos neurônios motores desse núcleo, juntamente com a atrofia da musculatura peniana nas fêmeas. Já nos machos, os níveis androgênicos circulantes que ocorrem logo após o parto são responsáveis pela inibição da apoptose desses neurônios. Se as fêmeas forem tratadas precocemente com andrógenos, resgata-se a função dos neurônios motores do SNB (14).
Manfred Gahr, um neurocientista na Free University of Amsterdam na Holanda, criou seu próprio “pássaro confuso sexualmente” (15,16). Antes do desenvolvimento gonadal, a região cerebral que comanda o comportamento sexual adulto foi alterada cirurgicamente. Se o conceito prevalente de que o cérebro sofre a ação dos hormônios gonadais fosse correto, o pássaro com o cérebro trocado, não teria alterações, desde que as gônadas são preservadas. O que ocorreu, no entanto, é que as fêmeas que receberam o cérebro masculino comportavam-se como fêmeas mas os machos que receberam cérebros femininos não se comportavam como machos. Os seus testículos também não se desenvolveram normalmente, indicando que, pelo menos nesta espécie, um cérebro geneticamente masculino é requerido para completar o desenvolvimento gonadal (17).
Vilain estudou com a técnica de microarray 12000 genes ativos no cérebro em ratos machos e fêmeas, encontrando 51 com níveis diferentes de expressão em embriões, antes que as gônadas se tivessem formado. O gene que mostrava a maior expressão diferencial era o Xist, localizado no cromossomo X, que se expressava 18,5 vezes mais em fêmeas. O peptídeo DEAD Box (Dby) e o fator de iniciação da tradução 2,Y (Eif2s3Y), ambos no cromossomo Y, apresentavam a maior expressão diferencial em machos (10 e 8,8 vezes mais expressos nos machos, respectivamente). Isto sugere que, em mamíferos, os cérebros masculino e feminino iniciam as vias cerebrais de diferenciação sexual antes mesmo da formação gonadal (18). Tentando explorar a hipótese de que os genes jogam um papel direto da diferenciação sexual cerebral e no comportamento sexual, de Vries comparou ratos XX e XY com ovários com ratos XX e XY com testículos. Apesar de a maioria dos fenótipos correlacionar-se com a presença de ovários ou testículos e, portanto, serem influenciados pelo ambiente hormonal, tanto os ratos machos e fêmeas com complemento cromossômico XY eram mais masculinos que os ratos XX na densidade de fibras imunorreativas a vasopressina no septo lateral, concluindo-se que os genes nos cromossomos sexuais contribuem diretamente ao desenvolvimento de diferenças sexuais no cérebro (19).
Na espécie humana, temos a situação das insensibilidades completas a andrógenos em que, devido a uma mutação do receptor androgênico, um indivíduo 46,XY, com testículos e produção adequada de testosterona e de dihidrotestosterona, não consegue virilizar sua genitália externa, apresentando-se fenotipicamente como sexo feminino. Esses indivíduos apresentam uma adequada adaptação ao sexo feminino, sentindo-se como mulheres. Isto suporta um papel para os hormônios gonadais na diferenciação sexual da função cerebral humana, apesar de não haver, até o momento, estudo nos cérebros de tais pacientes (9).
Mesmo sem dimorfismos sexuais nítidos, os circuitos neuronais mostram-se diferentes, justificando diferenças nos comportamentos masculino e feminino. Os hormônios sexuais determinam a identidade sexual do sistema nervoso durante o desenvolvimento inicial. A diferenciação sexual do sistema nervoso depende dos andrógenos produzidos pelos testículos desencadeando a “masculinização” do sistema nervoso central ao regular a expressão de uma variedade de genes relacionados ao sexo. Na ausência dos andrógenos, o sistema nervoso em desenvolvimento passa a ter diferentes características. Parece também haver uma discreta “feminização”, o que significa que o cérebro das fêmeas não é simplesmente um sistema que deixou de sofrer a ação dos andrógenos.
Os esteróides podem influenciar os neurônios de duas formas gerais: primeiro, eles podem atuar rapidamente para alterar a excitabilidade da membrana, a sensibilidade aos neurotransmissores ou mesmo a liberação desses neurotransmissores. Os esteróides fazem isso, em geral, ao se ligarem diretamente e por modularem as funções de várias enzimas, canais e receptores. Certos metabólitos da progesterona ligam-se ao receptor GABAérgico do tipo A e potencializam a quantidade de corrente de cloreto ativada pelo GABA. São efeitos muito parecidos aos ocasionados pelo uso de sedativos benzodiazepínicos e barbitúricos. Segundo, os esteróides podem se difundir através da membrana e se ligar a tipos específicos de receptores para esteróides no citoplasma e no núcleo. Os receptores podem tanto inibir como promover a transcrição gênica específica para cada tipo de hormônio sexual (20).
A testosterona não possui efeito “masculinizante” no sistema nervoso central, sendo rapidamente transformada em estradiol pela ação da aromatase e, esse estradiol, possui efeito “virilizante” no desenvolvimento do sistema nervoso dos machos. Uma vez que o pico estrogênico não ocorra, na presença das gônadas femininas, o cérebro das fêmeas escapam da transformação observada nos machos e, além disso, a ligação do estrógeno a alfa-feto-proteína dificulta sua passagem ao SNC (11).
Uma vez que hormônios, e não cromossomos, determinam diretamente as características sexuais do sistema nervoso, é possível existirem animais genotipicamente femininos com encéfalos masculinos e genotipicamente masculinos com encéfalos femininos. O tratamento com testosterona no início do desenvolvimento de alguma forma afeta a plenitude do comportamento feminino a longo prazo, o que pode ser bem observado em indivíduos com hiperplasia adrenal congênita que mostram, ao longo do desenvolvimento, um comportamento mais agressivo por parte das mulheres.
Pesquisadores da universidade de Rockefeller descrevem um efeito fascinante dos esteróides: eles contaram os espinhos dendríticos nos neurônios do hipocampo de ratas e descobriram que o número de espinhos mudava intensamente durante o ciclo estral de cinco dias nas fêmeas. A densidade de espinhos e os níveis de estradiol aumentavam juntos, e a injeção de estradiol também proporcionava um aumento do número de espinhos em animais cuja produção própria de estradiol era mantida baixa. Tendo em vista que os espinhos dendríticos são locais de sinapse no sistema nervoso, esses dados nos sugerem uma possível explicação para o fato de que a excitabilidade hipocampal também pareça acompanhar o ciclo estral. O hipocampo de animais estudados experimentalmente pode ser mais facilmente superexcitado, isto é, desempenhar atividade epileptiforme, quando os níveis de estrógeno aumentam . Woolley e McEwen demonstram que é verdadeiramente o estradiol que desencadeia um aumento no número de espinhos dendríticos e que, à medida que os neurônios hipocampais desenvolvem mais espinhos, eles também passam a ter mais sinapses excitatórias. Mais ainda, os novos espinhos parecem ter mais receptores n-metil d-aspartato (NMDA) para o glutamato. Isto pode explicar, também, porque o estradiol aumenta a plasticidade sináptica de longo prazo no hipocampo (21,22). Estudos recentes mostram que a ação do estrógeno no hipocampo serve para diminuir a inibição sináptica. Os receptores para estradiol no hipocampo estão principalmente em interneurônios inibitórios os quais, paradoxalmente, não são as células que desenvolvem mais espinhos. Contudo, o estradiol faz com que as células inibitórias produzam menos GABA, assim, sua inibição torna-se menos eficiente. Mulheres com atividade epileptiforme relatam que a freqüência e a gravidade de suas crises variam com os ciclos menstruais. Em geral, uma baixa quantidade de progesterona pode contribuir para susceptibilidade às crises. Sendo o hipocampo uma estrutura extremamente relevante na habilidade de navegação e memória espacial, Woolley notou que o pico de número de espinhos dendríticos hipocampais coincide com o pico de fertilidade no rato. Durante esse período as fêmeas procuram ativamente os parceiros, o que pode requerer uma maior habilidade para localização espacial que advém de um hipocampo mais excitável e repleto de receptores do tipo NMDA.
Quais as implicações práticas do conhecimento do dimorfismo sexual cerebral?
Supõe-se que 3% da população norte-americana seja composta por homossexuais. Vários estudos neuropsicológicos têm sido feitos comparando populações homo e heterossexuais. As alterações no comportamento homossexual são observadas desde a infância. Em termos estatísticos, meninos que preferem brinquedos típicos de meninas quando crianças, têm maior probabilidade de serem homossexuais quando adultos.
Núcleos hipotalâmicos em heterossexuais e em homossexuais - Estudos recentes dos INAH sugerem que haja diferenças entre os cérebros de homo e heterossexuais que poderiam estar relacionadas com a orientação sexual. Estudos realizados por Simon LeVay, revelam diferenças estruturais no hipotálamo de homossexuais quando comparados aos heterossexuais. O trabalho confirma os dados iniciais do trabalho de Laura Allen, da UCLA, de que o INAH-3 é cerca de duas vezes maior em homens do que em mulheres. Avaliando o cérebro de homossexuais observa-se também uma acentuada diminuição da região INAH-3 em homens homossexuais, com tamanho comparável a mulheres heterossexuais. Apesar dessa diferença anatômica e conseqüentemente fisiológica, é difícil avaliarmos o complexo comportamento sexual e o correlacionarmos com essa alteração. A lesão do núcleo homólogo ao INAH-3 em ratos pouco interfere no comportamento sexual (23).
Questões de lateralidade também têm sido avaliadas comparando-se homo e heterossexuais. Diferentes padrões de assimetria funcional cerebral são observados em homossexuais masculinos ou femininos, comparados a heterossexuais (24).
Dan Hamer e colaboradores acreditam haver um gene correlacionado com o dimorfismo sexual cerebral. Seu trabalho mostra uma maior probabilidade de um homem heterossexual vir a ser homossexual se houver na família algum indivíduo homossexual. Essa maior probabilidade estava mais diretamente relacionada com indivíduos homossexuais por parte materna do que paterna. Esse achado sugeriu que poderia haver alguma relação entre o cromossomo X e a orientação sexual. No estudo de Hamer o DNA do cromossomo X foi analisado em 40 pares de irmãos, não gêmeos, que fossem ambos homossexuais. Pela probabilidade de mistura do DNA do pai e da mãe, qualquer segmento específico de DNA seria o mesmo para os dois irmãos somente 50% das vezes. Hamer verificou que isso era verdade para a maior parte dos segmentos de DNA, exceto para uma porção na extremidade do cromossomo X que era muito mais provável de ser a mesma em irmãos homossexuais. A implicação para isso era de que essa parte do DNA, localizada na porção terminal braço longo do cromossomo X (Xq28), poderia codificar proteínas que de alguma forma fariam os encéfalos mais propensos a “funcionar” de uma forma homossexual (25).
Muitas questões têm sido levantadas com relação a crianças com anomalias da diferenciação sexual, que nascem com graus variados de ambigüidade genital. Esses casos têm sido encarados como verdadeiras “emergências médicas” e procura-se chegar a um diagnóstico etiológico precocemente, para que se possa atribuir um sexo de criação a estas crianças. Se em algumas situações as opções são claras, como por exemplo, nas meninas virilizadas por hiperplasia congênita de supra renais, onde a opção é pelo sexo feminino (são crianças com cariótipo 46,XX, estruturas internas e gônadas femininas, com potencial de fertilidade), em outras situações, temos grandes dúvidas quanto à atribuição do gênero. É o caso, por exemplo, das insensibilidades androgênicas onde tenha ocorrido um pequeno grau de virilização da genitália externa, denotando uma grande resistência do receptor androgênico. Nesses casos, questiona-se se o uso de testosterona exógena será capaz de vencer o bloqueio do receptor a ponto de permitir uma adequada função no sexo masculino. Mais desconfortável é a situação em que ocorre uma deficiência de 5 alfa-redutase tipo 2, em que a testosterona não é convertida a dihidrotestosterona, o hormônio responsável pela virlização da genitália externa. Esses pacientes, mesmo quando criados no sexo feminino, tendem a assumir o papel masculino na época da adolescência, mostrando que havia uma “marca” hipotalâmica já previamente estabelecida para o sexo masculino. As dúvidas chegam a tal ponto que há autores preconizando que se deixe a criança sem ter seu sexo definido, e se aguarde que ela própria, mais tarde, decida qual seu sexo. Convenhamos que é uma conduta complicada, levando-se em conta que essas crianças serão obrigadas a viver em uma sociedade em que a definição sexual já deve estar estabelecida cedo. Em alguns países como a República Dominicana, Nova Guiné, onde há alta incidência de deficiência de 5 alfa-redutase tipo 2, aceita-se um “terceiro sexo” temporário e essas crianças são mantidas nesse estágio de espera até que, na puberdade, ocorra a definição para o sexo masculino. Mesmo assim, as crianças passam por grande sofrimento em vista de serem proibidas de participarem de algumas atividades próprias do sexo masculino.
Se dispusermos de métodos que avaliem a característica cerebral de pacientes com anomalias da diferenciação sexual teremos aí um elemento importante para a atribuição do gênero e poderemos, talvez, evitar que mudanças de sexo em idades posteriores ocorram, com grande dose de sofrimento para os pacientes e para seus familiares. Em um estudo de 27 crianças com HCSR comparadas a 47 controles pareados por sexo e idade, foram avaliados por ressonância nuclear magnética os volumes do cérebro, ventrículos, lobo temporal, hipocampo e amígdala, demonstrando-se redução no tamanho da amígdala, estrutura com grande implicação funcional que merece exploração posterior (26). Este “mapeamento cerebral” em busca da característica sexual presente num determinado indivíduo merece ser perseguido e novos métodos de imagem devem ser desenvolvidos para tentarmos a caracterização do padrão anatômico e funcional do cérebro como definidor do sexo do indivíduo.
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